Davi, Saul e a crise da substituição.
Saul feriu os seus milhares
Porém Davi os seus dez milhares (1 Samuel 18.6–7).
Você já pensou na dificuldade que existe na transição de liderança? É muito comum que empresas sofram com a transição de seus proprietários, a cultura da empresa sofre modificação e seus colaboradores estranham no início. Ocasionalmente levantam-se questionamentos do tipo: “antes não era assim que funcionava…” Além do mais existe também as dificuldades internas dos próprios líderes. De forma semelhante, em igrejas, pode acontecer a mesma coisa, quando pastores/líderes são alocados para outros campos muitos membros ficam insatisfeitos.
Contudo, a vida é feita de mudanças e substituições devem acontecer, mais cedo ou mais tarde vamos abandonar o nosso posto e alguém tomará o nosso lugar.
O texto de 1 Samuel demonstra a transição do reinado de Saul para o reinado de Davi e analisando o drama humano destas narrativas não é à toa que tais histórias inspiraram produções televisivas e cinematográficas. Mas observando a história de Davi e Saul vemos um elemento importantíssimo na narrativa que geralmente é desconsiderado na produção artística: o que Deus está fazendo.
Comentando sobre 1 Samuel, o estudioso Carlos Osvaldo Pinto destaca:
Os preparativos divinos para o estabelecimento da monarquia exigiam a moldagem de Seu ungido por meio de humilhação e hostilidade de seus superiores e circunstantes. A preparação de Davi para reinar incluía reações conflitantes na corte, desde amizade dedicada e admiração até suspeita, ciúmes e ódio (18.1–16).[1]
O trecho de 1 Samuel 18.6–7 é uma simples canção entoada pelas mulheres em Israel quando Davi, até então chefe da guarda de Israel, vencia e demonstrava a sua superioridade militar em relação ao Rei Saul. Uma simples canção pôde mudar os rumos da monarquia de Israel, quando Davi continuou a vencer uma série de batalhas, Saul se encheu de inveja e raiva ao ouvir os cânticos das mulheres que atribuíam a Davi feitos maiores do que os do rei.
Por vezes, Deus usa o mal para castigar os maus, daí permitir a um espírito maligno atormentar Saul (v. 10). Duas vezes o rei tentou matar Davi, mas, nas duas ocasiões, este se desviou dele. Em seguida, Saul o pôs por chefe de mil soldados, talvez na esperança de que seria morto em combate contra os filisteus. (Ao que parece, antes disso, Davi comandava um número maior de homens.) mas o senhor era com Davi, e seus feitos chamavam a atenção de todo o Israel. [2]
As narrativas contidas na Escritura possuem o propósito claro e inequívoco de revelar o ser e o caráter de Deus. No entanto, como objetivo secundário a Escritura revela traços da natureza humana e seus desdobramentos. As narrativas do AT não estão preocupadas em revelar para os seus leitores vidas humanas perfeitas, vidas para as quais eu e você poderemos nos espelhar e tomar as suas atitudes como corretas em todos os momentos. Não há na maior parte do AT vidas humanas que são padrões de conduta, moral e espiritualidade. Na verdade, são registros narrativos que mostram pecados pessoais diversos, a dureza do coração humano, idolatria, conflitos familiares, usurpação de poder, traições, crimes, inveja e demais pecados terríveis.
O Antigo Testamento revela um retrato duro da realidade humana em todas as suas nuances. Todavia, antes de mostrar quem o homem é, o AT preocupa-se em revelar de forma clara quem Deus é. O AT retrata acontecimentos sobre um Deus que está realizando a sua grande história de redimir o mundo utilizando instrumentos humanos falhos e limitados.
Em algum momento da história de Israel, o autor de 1 Samuel descreve a transição do reinado de Saul para o reinado de Davi na incipiente e jovem monarquia israelita. Aqui neste momento histórico, notamos conflitos humanos que valem a pena ser observados com mais cautela. Você já sofreu injustamente nas mãos de terceiros? Você já sofreu por causa de pessoas invejosas? Ou melhor, você já fez pessoas sofrerem por causa da maldade do teu próprio coração?
O jovem Davi havia sido ungido como rei pelo profeta Samuel, todavia, Davi ainda iria percorrer uma longa jornada até assumir o governo e o trono de Israel. Naquele momento, Davi era um rei que vivia como servo de outro rei. Nada de privilégios ou luxo, apenas serviço, angústias, perseguições e muitos dissabores.
Deus já havia rejeitado Saul e a sua dinastia, o atual rei de Israel já havia manifestado a sua falta de fidelidade em relação ao Senhor e seus decretos. Saul demonstrou importar-se mais com a sua popularidade e o temor dos homens do que temer a Deus:
Então, disse Saul a Samuel: Pequei, pois transgredi o mandamento do Senhor e as tuas palavras; porque temi o povo e dei ouvidos à sua voz. Agora, pois, te rogo, perdoa-me o meu pecado e volta comigo, para que adore o Senhor. Porém Samuel disse a Saul: Não tornarei contigo; visto que rejeitaste a palavra do Senhor, já ele te rejeitou a ti, para que não sejas rei sobre Israel. (1 Samuel 15.24–26)
Assim Deus já estava preparando o novo rei para Israel, um rei que faria diferente. Porém, Saul não desistiria tão fácil assim de seu trono. Davi torna-se um dos chefes do exército do rei e ao decorrer do tempo vai acumulando diversas vitórias militares que vão lhe concedendo muito prestígio diante do povo.
Saía Davi aonde quer que Saul o enviava e se conduzia com prudência; de modo que Saul o pôs sobre tropas do seu exército, e era ele benquisto de todo o povo e até dos próprios servos de Saul. (1 Samuel 18.5)
Entretanto após as missões bem sucedidas de Davi a situação começou a mudar. O coração de Saul foi dominado por um sentimento de insegurança, temor e inveja em relação a Davi. Ao ponto que uma simples canção transtornou o coração do rei:
Sucedeu, porém, que, vindo Saul e seu exército, e voltando também Davi de ferir os filisteus, as mulheres de todas as cidades de Israel saíram ao encontro do rei Saul, cantando e dançando, com tambores, com júbilo e com instrumentos de música. As mulheres se alegravam e, cantando alternadamente, diziam:
Saul feriu os seus milhares,
porém Davi, os seus dez milhares.
Então, Saul se indignou muito, pois estas palavras lhe desagradaram em extremo; e disse: Dez milhares deram elas a Davi, e a mim somente milhares; na verdade, que lhe falta, senão o reino? Daquele dia em diante, Saul não via a Davi com bons olhos.
(1 Samuel 18.6–9)
Como você se sente quando os outros estão te ultrapassando? Qual o sentimento que domina o nosso coração qual alguém melhor do que nós entra em cena e ameaça a nossa posição? Será que é fácil ser substituído? Aceitamos de bom grado?
É necessária muita humilde para entender que ninguém é para sempre, todos nós somos substituíveis e sempre haverá alguém que pode fazer o que fazemos melhor do que nós, existe sempre alguém que entrou na “fila primeiro”. Há sempre alguém mais talentoso e capaz, precisamos lidar com esta realidade. E quando o tempo de ficar para trás chegar? Vamos ajudar e ensinar aqueles que vão nos substituir? Seremos parceiros ou faremos de tudo para atrapalhar, torcendo contra, para mostrar que ainda temos espaço? São batalhas que poderemos enfrentar em nosso coração. À medida que envelhecemos nos tornando mais difíceis de lidar, entretanto, peçamos ao Senhor mais humildade!
Assim, a partir da canção entoada pelas mulheres Saul começou a olhar para Davi com suspeita. O medo de perder o trono e consequentemente o prestígio do povo tomou conta do coração do rei. Apesar de Davi sempre ter demonstrado total fidelidade à Saul e toda a sua casa nada seria suficiente para convencer o rei de que Davi não tinha a intenção de usurpar o trono. O estopim para a mudança drástica do rei para com Davi foi a canção das mulheres, Saul incomoda-se tanto porque o rei considerava de forma demasiada a “opinião pública”.
Líderes populistas e absolutistas estão sempre dispostos a fazer tudo o que for necessário para permanecer no poder. O rei Saul não soube lidar com o fato de Davi ser bem sucedido naquilo que se propunha a fazer. Na verdade, o problema em questão era que Davi era melhor que Saul e isto causou uma grande inveja no rei que passou a ver Davi como uma ameaça latente e uma iminente substituição.
Eis aí a raiz da inveja: o problema não é o outro ser bom, o problema consiste no outro ser melhor do que eu. O problema não está naquilo que o outro tem ou deixou de ter, mas no fato dele possuir algo que eu não tenho. É preciso sempre monitorar o nosso coração para que não cultivemos um sentimento tão sórdido e perverso. Se permitirmos que a inveja domine a nossa vida seremos responsáveis por destruir oportunidades atrapalhando a jornada de homens e mulheres fiéis, causando um profundo mal ao próximo. A inveja e a insegurança nos afastará de possíveis cooperadores, pois sempre os veremos como ameaças constantes à dinastia que construímos para nós mesmos.
Viu Saul e reconheceu que o Senhor era com Davi; e Mical, filha de Saul, o amava. Então, Saul temeu ainda mais a Davi e continuamente foi seu inimigo. Cada vez que os príncipes dos filisteus saíam à batalha, Davi lograva mais êxito do que todos os servos de Saul; portanto, o seu nome se tornou muito estimado. (1 Samuel 18.28–30)
Pouco a pouco Deus estava preparando a nação de Israel para receber Davi como seu novo Rei. Ao mesmo tempo em que preparava o inexperiente Davi para as pressões e demandas exaustivas da monarquia. Todavia, Saul expressava cada vez mais o seu ódio contra o filho de Jessé ao perceber a sua própria família tomando partido por Davi. Jonâtas e Mical, seus filhos, já estavam ao lado de Davi e o Rei Saul ficava cada vez mais isolado em sua fome pelo poder.
É sempre desconcertante sermos atacados quando estamos fazendo o bem — estamos fazendo o melhor possível quando, de repente, uma violenta oposição se levanta contra nós. [3]
Por qual motivo Saul temia Davi? O filho de Jessé era um homem pobre e de família humilde o que poderia fazer contra o poderoso rei de Israel? A sede pelo poder e pela perpetuação de sua descendência cegou o rei Saul. O rei estava decidido a matar Davi para que seu filho, Jônatas, assumisse o trono.
“Pois, enquanto o filho de Jessé viver sobre a terra, nem tu estarás seguro, nem seguro o teu reino;” (1 Samuel 20.31)
Notemos que assumir o trono não era uma pretensão de Jônatas, mas um plano de Saul para a sua própria descendência, isto é, o plano de Saul era algo que estava mais relacionado ao próprio Saul do que à Jônatas e sua descendência. Em quantas situações colocamos sobre os outros, cargas que dizem respeito apenas a nossos próprios planos pessoais?
A experiência de Davi com a inimizade foi uma das mais fortes influências de formação em sua vida. Muito de sua espiritualidade — a forma como orava, como vivia — só pode ser entendida pela maneira como experimentou a inimizade e com ela conviveu. [3]
Devido aos acessos frequentes de ira e inveja, Saul esqueceu-se da realidade: Davi era um homem fiel e que possuía uma origem modesta e humilde, uma história muito similar a do próprio Saul.
“Os servos de Saul falaram estas palavras a Davi, o qual respondeu:
— Vocês acham que é pouca coisa ser genro do rei, sendo eu um homem pobre e sem importância? (1 Samuel 18.23)
Quando Saul foi chamado por Deus através do profeta Samuel a origem de Saul é bem semelhante a origem de Davi:
Então, respondeu Saul e disse: Porventura, não sou benjamita, da menor das tribos de Israel? E a minha família, a menor de todas as famílias da tribo de Benjamim? Por que, pois, me falas com tais palavras? (1 Samuel 9.21)
A fome e sede pelo poder corrompe os homens ao ponto de eles mesmos se tornarem os seus próprios algozes. Apenas quem já sofreu injustamente nas mãos de líderes perversos pode compreender a aflição de Davi. Entretanto, apesar de toda a oposição humana, Deus estava estabelecendo a dinastia de Davi debaixo do nariz de Saul. O Senhor utilizou de diversos instrumentos humanos para concretizar a sua vontade soberana, os homens não podem impedir que os decretos de Deus sejam realizados.
Davi possuiu algumas oportunidades para matar Saul e assim pôr fim a perseguição que estava sofrendo. Todavia, Davi poupa a vida de Saul pois sabia que não deveria matar um ungido do Senhor, ainda que os conselhos fossem para que ele fizesse o contrário. Neste episódio, Saul reconhece que Davi pagou o mal com o bem. Notemos a defesa de Davi:
Como o provérbio dos antigos diz: “Dos perversos procede a perversidade.” Mas eu não estenderei a minha mão contra o senhor, meu rei. Atrás de quem saiu o rei de Israel? A quem persegue? A um cão morto? A uma pulga? Que o SENHOR Deus seja o meu juiz e julgue entre nós dois. Que ele examine e defenda a minha causa, me faça justiça e me livre das mãos do rei.
Quando Davi acabou de falar todas estas palavras, Saul disse:
— É esta a sua voz, meu filho Davi?
E Saul chorou em alta voz. Então disse a Davi:
— Você é mais justo do que eu, pois me recompensou com o bem, enquanto eu o recompensei com o mal. Hoje você mostrou que me fez o bem, pois o SENHOR me havia posto em suas mãos, e você não me matou. Porque quem é que encontra o inimigo e o deixa ir sem lhe fazer mal? Que o SENHOR lhe pague com o bem por aquilo que você fez por mim no dia de hoje. Agora tenho certeza de que você será rei e de que o reino de Israel se manterá firme na sua mão. Portanto, jure pelo SENHOR que você não eliminará a minha descendência, nem apagará o meu nome da casa de meu pai. (1 Samuel 24.13–21)
Davi confia única e exclusivamente na salvação do Senhor para as suas demandas. “Que o SENHOR Deus seja o meu juiz e julgue entre nós dois. Que ele examine e defenda a minha causa, me faça justiça e me livre das mãos do rei.” Saul reconhece a atitude nobre e cristã de Davi ao pagar “o mal com o bem”. A atitude de Davi revela o Deus que há em sua vida. De fato, o encontro com Deus muda as nossas vidas. Eu e você precisamos ser capazes de realizar atos de compaixão e misericórdia para com os nossos inimigos. É o que Jesus, o Filho de Davi, vai dizer “amai os vossos inimigos” (Mt 5.44) Jesus demonstra que a forma de tratar os nossos opositores não pode ser “pagando com a mesma moeda”. É o que Jesus faz em seus últimos momentos, pedindo perdão ao pai por seus opressores: “Pai, perdoa-lhes, pois eles não sabem o que fazem!” (Lc 23.34). O mártir Estevão diz algo semelhante: “Então, ajoelhando-se, clamou em alta voz: Senhor, não lhes imputes este pecado!” (At 7.60) No entanto, o temor de Saul continua sendo o mesmo, o orgulho social e familiar estava em alta estima por Saul, o clamor do rei foi para que Davi não eliminasse a sua descendência.
É importante lembrar que Davi não é sempre visto como um modelo e padrão moral que nós deveríamos seguir. O mesmo Davi que acabara de poupar a vida do rei, logo mais a frente na narrativa, estava disposto a vingar-se do perverso Nabal, desta vez Davi não agiria com compaixão: “Ele me pagou o bem com o mal” (1 Sm 25.21).
Apesar disso, houve aqui a providência divina usando a sabedoria de Abigail que impediu uma vingança e um banho de sangue desmedido. Isto é, rapidamente podemos passar de misericordiosos para vingativos, de injustiçados para causadores do mal. Podemos nos tornar como nossos algozes. Atentemos para que após ser perseguidos por Saul, não sejamos no futuro nós mesmos a Saul. Não permita que as feridas que fizeram em você sejam o motivo para que você agora possa ferir outras pessoas. Podemos passar rapidamente de mocinhos de nossa história para vilões. A vingança pertence ao Senhor, nós somos pacificadores. A escolha certa será sempre pagar o mal com o bem, perdoar os nossos malfeitores e opositores, foi isto que Deus fez através de Cristo em nosso favor, perdão.
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REFERÊNCIAS
[1] Carlos Osvaldo Cardoso Pinto, Foco & Desenvolvimento no Antigo Testamento, ed. Juan Carlos Martinez, 2a Edição Revisada e Atualizada. (São Paulo: Hagnos, 2014), 278.
[2] William MacDonald, Comentário Bíblico Popular: Antigo Testamento, 2a edição. (São Paulo: Mundo Cristão, 2011), 209.
[3] Eugene Peterson, Transpondo Muralhas, 82.