Lar, doce lar.

Matteus Almeida
8 min readJul 30, 2024

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O que Gonçalves Dias, Gilberto Gil, Dominguinhos, e os Salmos falam sobre a saudade da terra natal?

Você já percebeu a relação que existe entre indivíduos e seus lugares de origem? Por que, geralmente, a nossa terra natal é sempre melhor do que qualquer outro lugar? Em nossa perspectiva, o melhor lugar do mundo é sempre o nosso lugar, a nossa terra.

Teologicamente, o homem anela por um lugar para chamar de seu. Todo cristão em essência é um peregrino neste mundo, um forasteiro, um expatriado desejando retornar ao seu lar. Após a expulsão do Jardim do Éden descrita no livro de Gênesis, a humanidade começa a viver um longo exílio. Deus promete um lugar para a descendência de Abrãao (Gn 12.1–3) e a narrativa do Antigo Testamento vai revelando de forma progressiva como o lugar e o povo estavam relacionados.

No Antigo Testamento, o povo de Israel possuía a sua identificação com a sua terra. Deus havia prometido um lugar para o seu povo e grande parte da narrativa da Escritura consiste no retorno de um grande exílio (a saída do Éden) à Terra Prometida.

A promessa da terra é um dos temas muito debatidos entre os teólogos. Se Deus havia prometido uma terra ao povo, então o povo em algum momento deveria possuir o lugar prometido. No entanto, a discussão acontece em torno da literalidade do lugar. A terra prometida é um lugar de fato ou um tipo*?

Oren R. Martin no livro Rumo a Canaã diz o seguinte:

A terra prometida a Abraão desenvolve o lugar do reino que foi perdido no Éden, e ao mesmo tempo funciona como um tipo que no decorrer da história de Israel antecipa a terra mais grandiosa — preparada para todo o povo de Deus ao longo da História — que virá como resultado da pessoa e da obra de Cristo. Em outras palavras, a terra e as suas bênçãos encontram o seu cumprimento no novo céu e na nova terra obtidos por Cristo. Quando cada lugar do povo de Deus é situado dentro do contexto histórico-redentor do plano de Deus, a terra prometida a Abraão é entendida como um cumprimento progressivo do reino de Deus na terra. Portanto, a terra prometida ao povo de Deus, que foi possuída pelo povo de Deus e perdida em várias ocasiões ao longo do Antigo Testamento apontava para algo maior, algo que o povo de Deus de todas as épocas (…)

A minha proposta não é entrar na discussão se o lugar é literal ou não, mas apenas demonstrar como o povo de Israel possuía uma íntima relação com a terra.

Deus havia prometido um lugar para o seu povo, na época de Josué parte da terra foi conquistada através da ajuda divina atuando em incursões militares contra outros povos. Progressivamente o domínio israelita vai expandindo a sua posse da terra, incursões militares aconteceram no período dos juízes e na época da monarquia com Saul e Davi.

No entanto, a posse da terra de Canaã é perdida devido à idolatria e a desobediência de Israel. O povo de Deus é levado cativo pelo império babilônico. O salmo 137 descreve um pouco do período de exílio na Babilônia, o lamento do povo por sua terra, bem como a identificação com o seu lugar:

“Junto aos rios da Babilônia, ali nos assentamos e choramos, quando nos lembramos de Sião. Sobre os salgueiros que há no meio dela, penduramos as nossas harpas. Pois lá aqueles que nos levaram cativos nos pediam uma canção; e os que nos destruíram, que os alegrássemos, dizendo: Cantai-nos uma das canções de Sião. Como cantaremos a canção do Senhor em terra estranha?” (Salmos 137.1–4)

Não havia sentido cantar as canções em terra estrangeira. Os rios da babilônia não inspiravam poesias como os rios de Israel. O exílio da terra e, de certa forma, de Deus roubou a alegria do povo, não havia motivo para júbilo apenas para lamento e saudades. Os rios da terra natal sempre serão os mais belos e límpidos, a relva de nossa terra é mais verde, os pássaros cantam diferente. A terra natal será sempre o melhor lugar do mundo, porque no final das contas, é o nosso lugar.

O escritor maranhense Gonçalves Dias (1823–1864) capta um pouco deste sentimento no seu famoso poema canção do exílio:

Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar — sozinho, à noite –
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu’inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

É a identificação com a terra de origem, o homem e a terra estão intimamente relacionados.

Mas o que Gonçalves Dias pode ensinar sobre às verdades de Deus? De fato, sabemos que a cultura humana é manchada pelo pecado. No entanto, ainda assim podemos perceber vestígios da bondade e da verdade de Deus nas produções culturais. O apóstolo Paulo utiliza-se de citações de poetas gregos para proclamar a verdade de Deus. Quando o poeta diz que “nele vivemos, nos movemos e existimos” (At 17.28). Paulo faz seus ouvintes escutarem essa voz porque ela ecoa uma verdade bíblica.

Zack Eswine em seu livro Pregação na Pós-Modernidade chama esse conceito de Eco.

Eco é uma representação precisa, mas diminuta, da voz de Deus no local. Missiólogos definem esses ecos como “analogias redentoras” que habitam uma cultura. Os ecos nos fazem lembrar da catequese apologética: culturas possuem analogias da verdade em suas próprias narrativas idólatras de sons e imagens. Pregadores missionários ajudam o povo a enxergar o “significado espiritual latente em seu contexto cultural.” O apóstolo Paulo identifica uma analogia da verdade latente nas narrativas idólatras da cultura. Ele constrói seu argumento a respeito da verdade com tais citações não porque tudo aquilo em que os poetas criam fosse verdade, mas porque algumas frases específicas do poema ecoam algo que se alinha com a Palavra de Deus revelada [At 17.28]. Paulo faz seus ouvintes escutarem essa voz porque ela ecoa uma verdade bíblica. Ele faz uma conexão com o que se ouve naquela cultura e o redireciona à história de Deus.

No caso de Israel a terra que “mana leite e mel” era um arquétipo tipológico dos novos céus e nova terra que Deus havia prometido e preparado para o seu povo. A terra possuía uma particularidade que não havia em nenhum outro lugar: Deus. A terra apenas era especial porque Deus era o seu benfeitor, era a aliança que fazia de Canaã ser o que era para o povo. Notemos que é a companhia que faz o lugar ser o que ele é, é a companhia que faz o lugar ser Casa. É a presença e a comunhão com Deus que fazia a terra de Canaã ser especial, ser o Lar do povo. Por mais fértil que fosse o solo, e por mais maravilhosas e exuberantes que fossem as paisagens e as colheitas, tudo aquilo sem Deus não havia esplendor nenhum.

Guardadas as devidas proporções, o lamento e a saudade registrados no livro de Salmos reflete o mesmo sentimento que há no cancioneiro popular sertanejo. O homem do sertão nordestino que abandona a sua terra e o seu povo em busca de uma vida melhor. O sertanejo que não consegue adaptar-se na vida urbana, em “terra estranha”.

Assim como no Antigo Testamento, o sertanejo nordestino têm a sua origem, cultura, raízes e crenças alicerçadas em seu lugar. Há uma profunda identificação entre o homem e a terra. O deslocamento do indivíduo para outras regiões do Brasil é um deslocamento de significado de si mesmo. Isto é, caso o sertanejo seja deslocado de seu espaço, perde as suas características. É uma dependência do ambiente e do povo que nele habita. O espaço dá significado ao homem e o homem da significado ao espaço, é uma relação simbiótica.

Na música Lamento Sertanejo podemos perceber a íntima relação entre o sertanejo e seu espaço geográfico:

Por ser de lá

Do sertão, lá do cerrado

Lá do interior do mato

Da caatinga do roçado

Eu quase não saio

Eu quase não tenho amigos

Eu quase que não consigo

Ficar na cidade sem viver contrariado

Por ser de lá

Na certa por isso mesmo

Não gosto de cama mole

Não sei comer sem torresmo

Eu quase não falo

Eu quase não sei de nada

Sou como rês desgarrada

Nessa multidão boiada caminhada a esmo

É no sertão que o homem é alguém. É em seu lugar de origem que tudo é familiar, é ali onde ele fora criado e seus filhos também. É naquele território que há a maior parte de suas melhores lembranças. É naquele chão que brota a fava para se colocar no baião. É ali que reside o seu povo, quem ele é.

Aqui em Tarrafas no Ceará existe o dia do tarrafense ausente uma data onde os filhos da terra retornam para passar as férias com seus amigos e parentes antes de retornar para o sudeste.

Mas, e sobre nós que somos cristãos? Por mais que o lugar de onde você veio seja uma maravilha, ainda vivemos em um mundo quebrado pelo pecado. A nossa existência neste mundo, por mais bela que seja sempre será uma canção de saudade!

O autor da carta aos Hebreus diz assim no capítulo 11:

Todos estes morreram na fé, sem ter obtido as promessas; vendo-as, porém, de longe, e saudando-as, e confessando que eram estrangeiros e peregrinos sobre a terra. Porque os que falam desse modo manifestam estar procurando uma pátria. E, se, na verdade, se lembrassem daquela de onde saíram, teriam oportunidade de voltar. 16 Mas, agora, aspiram a uma pátria superior, isto é, celestial. Por isso, Deus não se envergonha deles, de ser chamado o seu Deus, porquanto lhes preparou uma cidade.

O hinário Harpa Cristã possui um belo hino que retrata a imagem do cristão como um peregrino, a canção chama-se o exilado:

Meus pecados foram muitos

Mui culpado sou

Porém, Seu sangue põe-me limpo

Eu para a pátria vou

Qual filho de seu lar saudoso

Eu quero ir

Qual passarinho para o ninho

Pra os braços seus fugir

É fiel, Sua vinda é certa

Quando? Eu não sei

Mas Ele manda estar alerta

Do exílio voltarei

De fato, a nossa pátria está nos céus (Fp 3.20). Todo cristão vive um longo exílio espiritual, estamos vivendo em terra estranha aguardando o nosso saudoso lar. Apesar deste mundo possuir belas paisagens e bons momentos, ainda é um mundo caído e quebrado. É um mundo em “preto e branco”, as verdadeiras cores da bem aventurada existência não serão aqui. Nada neste mundo irá nos preencher por completo.

O escritor e teólogo C.S. Lewis diz assim: “o fato de que o nosso coração não consegue ser preenchido pelas coisas da terra, é a prova que o céu deve ser a nossa casa.”

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Matteus Almeida

Missionário no Sertão Cearense. Uso o Medium para salvar os meus sermões e reflexões.