Os homens que são irmãos dos pássaros.

Matteus Almeida
8 min readApr 18, 2023

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dois anos o teólogo Guilherme de Carvalho publicou um texto que se intitulava: “Podem os evangélicos ser irmãos dos pássaros?” Obviamente o texto causou bastante polêmica na rede entre os desavisados. Contudo, o que realmente Francisco de Assis, o autor do conceito, quis dizer com essa tal de “irmandade com os pássaros”?

A PROVISÃO DOS PÁSSAROS

O ocidente globalizado e industrializado encontra-se bastante distante da realidade rural da Palestina da época de Jesus. Assim, é necessário levar em conta que a maior parte das ilustrações utilizadas por Cristo fazem parte do cotidiano de uma sociedade agrária. Ao utilizar a ilustração de pássaros e lírios do campo Jesus pretendia libertar seus discípulos daquela insegurança ansiosa sobre as necessidades básicas da vida (comida, bebida e vestuário) que levam as pessoas a sentir que nunca possuem o suficiente. Todavia, a ansiedade de nossa sociedade contemporânea não consiste no medo da possível carência destes recursos básicos citados, mas na ansiedade obsessiva de manter um padrão de vida cada vez maior. Ainda que reconheçamos que precisamos de muito pouco para sobreviver e que grande parte do que temos, no final das contas, não são coisas realmente indispensáveis para a nossa sobrevivência. Ou seja, a maioria de nós possui muito mais do que realmente precisa.

Observem as aves do céu que não semeiam, não colhem, nem ajuntam em celeiros. No entanto, o Pai de vocês, que está no céu, as sustenta. Será que vocês não valem muito mais do que as aves? (Mateus 6.26)

Dentre as atividades consideradas relaxantes, a observação de aves é uma das que mais produzem resultados, é uma atividade sustentável que tem como objetivo observar as aves em seu hábitat natural. Pela ótica de Jesus, observar aves nos fará compreender que a providência divina cuida de cada uma delas. Os pássaros não se preocupam com o dia de amanhã, e nem possuem recursos para estocar alimentos, as aves vivem na confiança e dependência de Deus.

Tu fazes rebentar fontes no vale, cujas águas correm entre os montes; dão de beber a todos os animais do campo; os jumentos selvagens matam a sua sede. Junto delas as aves do céu têm o eu pouso e, por entre a ramagem, elas se põem a cantar. (…) Fazes crescer a relva para os animais e as plantas que o ser humano cultiva, para que da terra tire o seu alimento: o vinho, que alegra o coração, o azeite, que lhe dá brilho ao rosto, e o pão, que lhe sustém as forças. (Sl 104.10–15)

Os humanos podem confiar em Deus para suas necessidades básicas, tratando os recursos da criação como a provisão de Deus para essas necessidades, somente quando reconhecem que pertencem à comunidade das criaturas de Deus, para todas as quais o Criador provê. Somente aqueles que reconhecem os pássaros como seus semelhantes podem apreciar o ponto de vista de Jesus.

Em ti esperam os olhos de todos, e tu, a seu tempo, lhes dás o alimento. Abres a mão e satisfazes os desejos de todos os viventes. (Sl 145.15–16)

Na época de Jesus os pardais eram os alimentos que possuíam o menor valor econômico. Por isso é interessante perceber que o Nosso Senhor escolhe para a sua ilustração sobre confiar na providência divina uma criatura insignificante para os homens: um pássaro. Ou seja, mesmo uma criatura que os homens consideram sem importância (sem valor utilitário) é importante o suficiente para nunca escapar da cuidadosa atenção divina. Até pássaros que não possuem valor para homens são alcançados pela providência divina.

E dá o alimento aos animais e aos filhos dos corvos, quando clamam. (Sl 147.9)

Afirmar que os humanos são mais valiosos do que os pássaros, não significa dizer que os animais podem ser desconsiderados e que não possuem valor nenhum. Os humanos valem mais do que animais, então se algo é verdade no caso dos animais, também deve ser verdade no caso dos humanos. É um sentido de proporcionalidade, do maior para o menor. Seguindo a mesma linha de raciocínio, se atos de compaixão para animais são lícitos no sábado, por que não seriam para humanos? (Mt 12.11–12) Se Deus provê para pássaros, também provê para humanos. Se nem pardais escapam do cuidado divino, os discípulos de Jesus podem ter certeza de que estão sob os cuidados de Deus.

Tu, Senhor, preservas as pessoas e os animais. (Sl 36.6)

Como pode a busca de bens materiais não governar a vida de alguém?Engana-se quem acredita que a ansiedade por bens materiais é exclusiva de pessoas abastadas materialmente, pessoas ricas. Pelo contrário, a preocupação pelo acúmulo de bens materiais é também acentuada na vida daqueles que possuem pouco, é um alerta para todos. Na vida daqueles que têm pouco a luta diária pela sobrevivência é extrema, é necessário garantir o mínimo para sobreviver, esta era a realidade dos diaristas dos tempos de Jesus. Estes eram trabalhadores que recebiam apenas o mínimo necessário a cada dia.

O pobre também possui a esperança de ficar rico e se “dar bem na vida” é um projeto que domina o coração de muitos. Precisamos considerar que aqueles que não possuem reservas financeiras estão mais susceptíveis a sofrer diante de crises fazendo com que a sua esperança última seja direcionada ao acúmulo de bens. Em outras palavras, colocar a esperança em bens materiais é um risco presente na vida de ricos e pobres, sem exceção.

Com a ilustração da provisão para os pássaros Jesus espera de seus discípulos a substituição da ansiedade natural pelas necessidades básicas pela natural confiança no Criador que provê as necessidades de todas as criaturas vivas. A confiança é chamada de natural porque esta é a confiança que observamos na natureza. Notemos que o texto diz “observem os pássaros”. A maneira como os homens produzem seu alimento através de processos técnicos e industriais, pode fazer com que essa dependência divina passe despercebida, porém Deus sustenta o homem como sustenta os pássaros.

Os leõezinhos rugem pela presa e buscam de Deus o sustento; em vindo o sol, eles se recolhem e se acomodam nos seus covis. Então as pessoas saem para o seu trabalho e para o seu serviço até a tarde. (Sl 104.21–23)

Todos esperam de ti que lhes dês de comer a seu tempo. Se lhes dás, eles o recolhem; se abres a mão, eles se fartam de bens. (Sl 104.27–28)

É importante ressaltar que Jesus não estimula a ociosidade em detrimento da provisão divina. Não são conceitos mutualmente excludentes, mas complementares. Os pássaros apesar de receberem o sustento da parte de Deus, eles trabalham, procuram alimento diligentemente, gastam energias, entretanto, é Deus quem os sustenta. A questão é que a dependência da provisão do Criador para os pássaros é mais imediata e obvia, pois estes “não recolhem em celeiros”.

A ADORAÇÃO DOS LÍRIOS

Os seres humanos são as únicas criaturas que escolhem deliberadamente não cumprir o propósito para o qual foram designadas. Por este motivo existem mandamentos na Escritura que nos instigam à retornar ao nosso propósito fundamental: “portanto, quer comais, bebais ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus.” (1 Co 10.31).

Em contrapartida um lírio do campo não precisa fazer nada em específico para louvar a Deus. É simplesmente por ser e crescer ele louva a Deus. Isto é, em certo sentido, em relação à adoração ao Criador nós precisamos aprender com a natureza que já adora de forma espontânea o Todo Poderoso.

Ruja o mar e a sua plenitude, o mundo e os que nele habitam. Os rios batam palma, e juntos cantem de júbilo os montes. (Sl 98.7–8)

O mundo criado adora e proclama a glória de Deus:

Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mãos. (Sl 19.1)

O louvor a Deus inicia nos céus (anjos) e vai descendo a todas as criaturas (animais e homens):

Aleluia! Louvem o Senhor do alto dos céus, louvem o Senhor nas alturas. Louvem o Senhor , todos os seus anjos; louvem-no, todos os seus exércitos celestiais. Louvem o Senhor , sol e lua; louvem-no, todas as estrelas luzentes. Louvem o Senhor , céus dos céus e as águas que estão acima do firmamento. Louvem o nome do Senhor , pois ele deu uma ordem, e foram criados. Ele os estabeleceu para todo o sempre; fixou-lhes uma ordem que não será mudada. Desde a terra, louvem o Senhor ! Louvem-no, monstros marinhos e todos os abismos; fogo e granizo, neve e vapor e ventos fortes que lhe executam a palavra; montes e todas as colinas, árvores frutíferas e todos os cedros; feras e todo o gado, animais que rastejam e aves; reis da terra e todos os povos, príncipes e todos os juízes da terra; rapazes e moças, velhos e crianças. Louvem o nome do Senhor , porque só o seu nome é excelso; a sua majestade está acima da terra e do céu. Ele exalta o poder do seu povo, o louvor de todos os seus santos, dos filhos de Israel, povo que lhe é chegado. Aleluia! (Sl 148.1–14)

O homem se juntará ao coro cósmico em louvor a Deus:

Então ouvi que toda criatura que há no céu e sobre a terra, debaixo da terra e sobre o mar, e tudo o que neles há, estava dizendo: “Àquele que está sentado no trono e ao Cordeiro sejam o louvor, a honra, a glória e o domínio para todo o sempre. (Ap 5.13)

Richard Bauckham diz que “existe um universo de louvor, um hino contínuo de glória, acontecendo ao nosso redor se decidirmos percebê-lo. A Bíblia “desdivinizou” a natureza, mas não “dessacralizou” a natureza. A natureza permanece sagrada no sentido de que pertence a Deus, existe para a glória de Deus e até reflete a glória de Deus, como os humanos também fazem.”

Outro ponto, em relação aos lírios, se Deus se dá ao trabalho de dar tanta beleza a criaturas que vivem tão brevemente, quanto mais ele fornecerá roupas para os seus filhos! O ensinamento é que os ouvintes de Jesus não precisam se preocupar com suas necessidades básicas de sobrevivência. Podemos tirar essa lição apenas compreendendo que pertencemos à comunidade das criaturas de Deus junto com os pássaros e as flores.

Jesus recomenda a libertação da ansiedade sobre as necessidades materiais básicas da vida com base na confiança em Deus, o bom e generoso Criador. Entretanto, é necessário fazer a distinção entre necessidades básicas e excessos desnecessários e nababescos. Lembremos, Cristo promete suprir as nossas necessidades básicas. Assim, ao olhar para os pássaros e os lírios podemos recordar que “se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada no forno, não fará muito mais por vocês, homens de pequena fé?” (Mt 6.30).

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Matteus Almeida

Missionário no Sertão Cearense. Uso o Medium para salvar os meus sermões e reflexões.